Corruptos são eles, não eu

Fernando Lanzer
8 min readJul 7, 2019

Uma versão deste texto foi publicada no Capítulo 19 do livro Para Entender A Cultura Brasileira, escrito em parceria com Jussara Pereira de Souza.

F: Vamos falar de corrupção.

J: Vamos falar deles, então, e não de nós. Corruptos são eles, e não nós.

F: Todo mundo fala isso.

J: E sempre como sendo uma outra pessoa. Mas não se dando conta do seu pedaço.

F: Das suas próprias pequenas e grandes corrupções.

J: Para começo de conversa, corrupção é uma coisa que tem parâmetros diferentes em diferentes culturas. Uma coisa que pode ser totalmente normal numa cultura, como você aceitar o favor de um amigo para resolver um problema, pode não ser bem vista numa outra cultura onde as coisas são um pouco mais restritas. Existe uma diferença grande, definindo aquilo que vai para o lado da corrupção, que é quando se faz efetivamente um pagamento de propina em dinheiro. É a diferença entre um jeitinho brasileiro, um jeitinho de resolver um problema com a ajuda de um amigo; e você pagar alguém para fazer alguma coisa para você.

F: No Brasil, quando envolve dinheiro, aí é claramente corrupção.

J: Claramente corrupção. Contudo que o despachante (risos), é um grande corrupto.

F: Diria que é mais um corruptor. É uma corrupção institucionalizada.

J: Você paga um despachante…Para ele despachar o assunto.

F: E, na verdade, o que ele vai fazer é o que você deveria estar fazendo diretamente.

J: Ou também vai fazer aquilo que a instituição deveria estar fazendo de uma maneira mais eficaz, mais fácil, e mais rápida. Você, na verdade, quer ir lá burlar a regra para conseguir um resultado melhor, ou mais cedo.

F: O despachante não necessariamente envolve corrupção em termos de conseguir um favor para passar o seu caso na frente dos outros, às vezes ele é somente um intermediário.

J: Sim, um intermediário para aquela pessoa que não quer o trabalho de preparar a papelada por si mesma, ir na instituição, ficar na fila… Realmente, muitas vezes é só isso. Mas, muitas vezes, a pessoa que está contratando o despachante fecha o olho, porque sabe que lá na instituição ele vai pagar alguém para os resultados serem mais rápidos.

F: Vai passar na frente dos outros na fila. Vai ser atendido fora da fila… Porque ele vem com vários casos.

J: E já tem o seu conhecido lá dentro da instituição.

F: Já que ele cobra um valor dos seus clientes como despachante, ele tira um pouco daquele valor e paga para alguém dentro da instituição dar um tratamento diferencial… Para os seus casos. Ou para ser mais rápido, ou para poder passar na frente da fila. Ou até para conseguir uma coisa que talvez fosse negada, se não pagasse. Conseguir uma licença que não seria, normalmente, concedida, ou pela falta de um documento. E o cara assim mesmo consegue que concedam ou que deem aquilo que se está solicitando, mesmo faltando um documento.

J: Agora, quando envolve o pagar para alguém, fica sendo uma coisa clara de corrupção. Quando você tem, por exemplo, um cliente para quem você oferece uma entrada para ir assistir o desfile de carnaval no sambódromo.

F: Quando acontece uma espécie de troca de favores em vez de pagar dinheiro, aí, muitas vezes, a gente acha, no Brasil, que isso não é corrupção. Mas, claramente, em outros países isso é considerado corrupção.

J: Um estrangeiro de uma cultura que tenha regras mais restritas, pode considerar, por exemplo, que você dar uma entrada para clientes irem num camarote assistir o desfile no carnaval, serem levados de limusine… Que isso é corrupção. No Brasil isso não é visto como tal. Várias empresas oferecem isso a seus clientes. Qualquer coisa que seja um brinde simples, mas bonito, ou levar um cliente para jantar num restaurante fino, tudo isso é considerado OK. Agora, se você oferece um carro de presente para o cliente, aí está claramente andando para o lado da corrupção.

F: É uma questão do tamanho do valor. Me lembra aquela velha piada do Juca Chaves, dele falando com uma mulher no avião e perguntando se ela dormiria com ele por um milhão de reais. E ela fica meio chocada, e para e pensa e conversa um pouco e, no fim, “Bom, talvez”, não é? E ele diz: “E por cem reais?” Aí ela diz, indignada: “Claro que não! Você acha que eu sou prostituta?” Ele diz: “Bom, isso nós já estabelecemos na primeira pergunta”.

J: (RISOS)

F: Ela tinha topado por um milhão, não é? Então, fica uma coisa semelhante o discutir a corrupção.

J: Do valor. Qual é o seu preço?

F: Nós tínhamos um gerente de agência, num banco em que eu trabalhava, e o cara ganhou de comissão um Jeep, de uma empresa cliente. Isso me parecia uma coisa de corrupção. No entanto, eu conheço um gerente do Banco do Brasil, e todos os gerentes do Banco do Brasil passavam pelo mesmo: costumavam receber dos seus clientes uma garrafa de whisky ou, às vezes, uma caixa de garrafas de whisky a cada Natal, como presente de fim de ano. Esse gerente enchia a sua casa de garrafas de vinho, de whisky e outras bebidas, que eram sempre brindes de fim de ano. Recebia de todos os empresários clientes da agência e aquilo não era considerado corrupção. Mas em alguns países seria, sem dúvida, considerado corrupção.

J: Especialmente uma caixa, não é?

F: Mas uma vez ele ganhou um aparelho de ar-condicionado.

J: É, aí já…

F: De uma empresa que fabricava esses aparelhos de ar-condicionado e que era cliente corporativo do banco. Resolveram dar um ar-condicionado para ele de brinde. Onde é que você define o limite? Caneta pode, mas desde que não seja uma caneta Cartier?

J: Não é fácil de estabelecer. Mas aqui nós estamos falando dessa questão de diferenciar entre eu e os outros. O que se vê nos outros é mais fácil de achar que é corrupção. Especialmente quando se fala da classe dos políticos ou em situações que você vê, claramente, que está havendo corrupção. Mas as pessoas também facilmente aceitam pequenas coisas, como pagar para ganhar a sua carteira de motorista. Ou também como uma pessoa me contou: “eu queria trazer do exterior uns materiais médicos que são muito caros. Aqui no Brasil está se vendendo pelo dobro do preço do que é nos Estados Unidos. Sabe o que eu faço? Eu viajo para lá e boto na minha bagagem, distribuo vários dentro dos meus nécessaires diferentes. Agora eu tenho que fazer isso assim, porque, há um tempo atrás, eu podia fazer diferente, pagava para uma pessoa…”

F: Na alfândega.

J: “Para deixar passar, dava um dinheiro. E aí um colega me disse, ’Márcia, você não faça isso! Você não faça isso porque você pode ser presa, hoje em dia as regras estão mais duras e tal.’” Então, ela começou a fazer diferente e trazer tudo escondido na bagagem… Mas, ao mesmo tempo, não se dá conta que…

F: É contrabando!

J: E ela estava pagando alguém para…

F: Corrompendo, subornando.

J: Esse é um outro lado interessante. É mais ou menos como os americanos, quando estabelecem que dentro do seu território eles não podem torturar, mas fora, em outros países, eles podem… Fazendo uma analogia: muitas empresas quando vêm para países ditos mais corruptos do que o seu próprio como, sei lá, vamos pegar a Alemanha, a Holanda, uma série de países que, dentro daquele índice da Transparência Internacional, estariam como menos corruptos. Mas aí, muitas vezes, as corporações quando vão para outros países se sentem assim…

F: Se permitem.

J: Se permitem corromper. E não se questionam tanto quanto se questionariam no seu próprio país. A corrupção sempre tem dois lados. É importante para quem vem para o Brasil ter muito claro os seus princípios, mesmo que isso possa significar perder um negócio. Se você está sendo chamado a corromper, você também tem que pensar nesse seu lado, de ser o corruptor.

F: Sem dúvida. Voltemos um pouco para a questão do “corruptos são eles e não eu.” É uma coisa bem do Coletivismo, mais uma vez sintetizada naquela frase: “para os meus amigos tudo e para os outros os rigores da lei.” Quem é meu amigo está fazendo comigo troca de favores. Não é corrupção. Agora, corrupção é o que os outros estão fazendo. Mas não o que os meus amigos fazem.

J: Faça o que eu digo e não o que eu faço.

F: Como aquela história de dizer que negociata é o bom negócio do qual você não participa. Se você faz parte do negócio, você chama isso “um bom negócio” e não uma negociata. Essa coisa é muito do Coletivismo: o que está acontecendo com o meu grupo é válido. Não é crime, não é corrupção. Mas o que está acontecendo com os outros grupos é criminoso, é condenável. Porque estão fora do meu grupo.

J: É que dentro da cultura coletivista existe muito essa questão do “nós” e “eles.” Para os meus tudo, para os outros a lei.

F: Agora está todo mundo reclamando no Brasil da corrupção: “vamos acabar com isso!” Mas se confunde isso com política partidária. Fica de novo assim: um grupo contra outro grupo. E não, simplesmente, o grupo das pessoas honestas querendo que se acabe com a desonestidade. Quem é do PT releva o que está acontecendo dentro do PT porque é do PT, porque “é do nosso grupo.” E aí, a defesa é assim, “Mas no PSDB também tinha corrupção”. Então, fica de novo uma coisa de um grupo contra outro grupo e esquecem o essencial: isso é honestidade versus desonestidade. Isso fica secundário e quem é acusado logo fala: “e os outros”? “E o meu grupo, como é que o meu grupo se compara com os outros?” e acabam esquecendo a questão central, que é a corrupção.

J: Exato.

F: É isso que deveria ser execrado por todos. Mas como dentro do Coletivismo fica essa coisa de que é importante o relacionamento, a troca de favores e ajudar o outro, isso aliado à flexibilidade acaba facilitando muito a corrupção.

J: Existe uma tolerância muito grande para o improviso, inclusive improvisar a corrupção.

F: É muito difícil acabar com isso. Mesmo quando alguém está numa posição de comando, na presidência de uma empresa, ou um chefe de polícia, tentar acabar com isso é difícil. É lógico que precisa acabar, deve-se continuar lutando por isso, mas, realmente, é muito difícil porque está muito arraigado. E muitas pessoas não se dão conta da sua parte nisso, daquilo que elas fazem, que cada um faz.

J: No microcosmo falta cada um dar conta do seu pedacinho de participação em corromper alguém, ou de se deixar corromper. Cada um precisa cuidar do seu pedaço.

F: O jovem pode ir para a rua protestar; mas ele está, por exemplo, baixando um filme no computador usando um site pirata, sem pagar royalties. E acha isso a coisa mais natural do mundo. E não vê que isso também é uma transgressão, uma forma de corrupção. Você copiar alguma coisa ilegalmente é considerado normal.

J: A mudança é pela educação. Temos que salvar as crianças. Porque é preciso começar com uma educação diferente. Para que se criem novas gerações com uma visão diferente.

F: Eu me lembro quando eu era pequeno, na escola, e a maioria dos meus coleguinhas colava nas provas. E queriam colar de mim e eu não colava e não dava cola. Mas eu era, então, o chato. Se eu não desse cola. Quem não dá cola é chato. E é execrado e isolado pela turma. Fica uma coisa de coleguismo. Coleguismo significa que você mente para encobrir alguma contravenção dos seus amigos e que você ajuda os seus amigos mesmo quando eles estão trapaceando para passar na prova. Não é? Então o coleguismo, o relacionamento, o Coletivismo, isso é considerado mais importante do que qualquer tipo de norma, é mais importante do que ser honesto.

J: Isso, realmente, é complicado. Para mudar, precisa mudar desde a educação de base, não é?

F: Não só na escola, mas em casa, na família.

J: É preciso mudar a educação de uma maneira geral.

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Fernando Lanzer
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Written by Fernando Lanzer

Consultant on Leadership Development, Managing Across Cultures, Leading Change. Author of “Take Off Your Glasses.”

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