Nem Direita, nem Esquerda: entenda o PIDIR

Fernando Lanzer
7 min readJul 8, 2024

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É a esquerda de quem vai, ou de quem vem?

A Direita e a Esquerda são denominações que se referem a posicionamentos políticos. É fato que são rótulos simplistas e há muito ultrapassados; mas o mais importante é que existe algo que precede aos posicionamentos políticos em qualquer sociedade, tanto no Brasil quanto como em qualquer lugar do mundo: são os valores culturais subjacentes.

Esses valores precedem à política, à religião e até mesmo ao futebol. Eles foram identificados pela primeira vez em pesquisas lideradas pelo professor holandês Geert Hofstede e desde então foram mensurados estatisticamente em mais de cem países na forma de cinco grandes dimensões de valores culturais, sintetizados no acróstico PIDIR: Poder, Individualismo, Desempenho, Incerteza e Relativismo.

As pesquisas originais utilizaram outros rótulos, que evoluíram para formas mais atualizadas e mais adequadas ao debate com as novas gerações no Século 21, à medida em que novas pesquisas estatísticas continuaram a ser aplicadas, mudando e enriquecendo o modelo inicial. Eis a síntese (quem quiser aprofundar, vide Gestão Transcultural: um guia prático para um mundo globalizado):

Poder (Distância de Poder — PDI, no original) é o grau em que as pessoas aceitam que exista uma hierarquia pronunciada na sociedade. Nas sociedades de alta PDI, como o Brasil, manda quem pode e obedece quem tem juízo. Nas sociedades de baixa PDI, como os EUA e a Holanda, a hierarquia é menos pronunciada e existe mais igualdade.

Ao discutir política, religião e futebol, no Brasil, as pessoas tentam “mandar” no pensamento dos outros; tentam impor suas ideias, pois vigora o princípio da hierarquia. O pressuposto é o de que não há igualdade e sim uma hierarquia onde os mais poderosos mandam em quem está abaixo deles e obedecem quem está acima. Nesse tipo de cultura, o importante é identificar qual é a posição de cada um na hierarquia social, descobrindo assim em quem você pode mandar e a quem você deve obedecer. O Porta dos Fundos tem um quadro ótimo que exemplifica esse comportamento. (https://www.youtube.com/watch?v=9yuywZ5InbI).

A confusão entre direita e esquerda fica sobrepujada pela questão do autoritarismo na cultura brasileira: o que se vê é uma ditadura da direita brigando com uma ditadura da esquerda, cada qual acusando o outro lado de ser autoritário. O mais comum é ver o pessoal que se diz de direita acusando os da esquerda de defenderem o comunismo como regime autoritário. Na verdade, a questão da hierarquia precede comunismo e capitalismo.

Nas sociedades hierárquicas (alta PDI) como a Rússia, havia imperialismo autoritário que foi substituído por comunismo autoritário; depois caiu o comunismo e veio o capitalismo, que segue sendo autoritário com Putin como sempre foi na cultura russa. Na China o processo foi semelhante: a cultura chinesa sempre foi hierárquica e continuou sendo, independente dos regimes políticos que mudaram no decorrer da história.

Nas sociedades igualitárias (baixa PDI) como os países escandinavos (Suécia, Dinamarca, Finlândia e Noruega), mesmo as monarquias são democráticas e existe menos hierarquia social do que no Brasil. As pessoas demonstram mais respeito mútuo nas discussões políticas, pois o pressuposto é o de que todos têm posições de relativa igualdade social.

Em função dos valores de hierarquia pronunciada na cultura brasileira, no dia-a-dia se utilizam expressões idiomáticas que refletem esses valores: “Fulaninha ARRASOU com seu vestido maravilhoso;” “o Flamengo IMPÔS o seu jogo sobre o Fluminense;” “o governador é quem MANDA em todo mundo no seu estado;” “afinal, quem é que MANDA no Brasil: é o Presidente, é o Congresso, ou é o STF?”. Numa sociedade hierárquica, a cultura popular entende que alguém deve estar mandando nos demais… fica mais difícil entender que exista uma equivalência entre os três Poderes de uma democracia republicana. A elite intelectual pode entender e defender a democracia; mas a maioria da população tem dificuldade em entender como isso é na prática.

Individualismo (mesmo rótulo no original — IDV) é o grau em que as pessoas valorizam a liberdade e a responsabilidade individuais, em detrimento da lealdade à família e aos grupos. Nas sociedades grupistas (baixo IDV) como o Brasil, o mais importante é o relacionamento interpessoal e a lealdade aos grupos. Se evitam os conflitos dentro de cada grupo, mas ocorrem muitos conflitos entre um grupo e outro grupo. Por causa da valorização dos relacionamentos, as discussões logo descambam para ofensas pessoais e as pessoas se sentem magoadas com facilidade. Quando eclode uma discussão dentro de um grupo, é comum os dissidentes deixarem o grupo e formarem um grupo rival. Foi o que ocorreu com os partidos políticos brasileiros, que logo passaram de meia dúzia para meia centena, fracionando a esquerda, a direita e o centro. A expressão “para os amigos, tudo; para os demais, os rigores da lei!” sintetiza essa mentalidade grupista.

Nas sociedades individualistas, como os EUA e a Holanda, as pessoas se sentem responsáveis por expressarem suas opiniões de maneira franca e direta, sem se preocupar muito com a reação dos outros. O importante é falar o que você pensa, doa a quem doer. Vale mais se sentir coerente consigo mesmo, do que falar aquilo que os outros gostariam de ouvir. Discussões entre dissidentes acontecem com frequência, mas as pessoas não se sentem ofendidas, pois estão discutindo ideias e não costumam trocar ofensas pessoais. Podem discordar e permanecer amigos, cada um respeitando as ideias do outro. São comuns as discussões dentro do mesmo partido, ou entre um casal, sem que isso leve ao divórcio ou à formação de um novo partido. As tarefas vêm em primeiro lugar e as relações interpessoais ficam em segundo plano.

A direita brasileira fala em liberdade de expressão; mas na verdade defendem a liberdade de criticar seus oponentes e propagar notícias falsas. O relacionamento (e o evitamento de conflitos internos) segue sendo mais valorizado do que a comunicação direta e livre em qualquer situação.

Desempenho (que Hofstede chamou originalmente de Masculinidade — MAS) é o grau em que uma cultura valoriza a ostentação do bom desempenho (alto DES) em detrimento de valorizar a qualidade de vida e o carinho para com os outros. Nas sociedades de alta valorização do desempenho, como o Japão, os EUA, a Alemanha e a China, os vencedores são reconhecidos e recompensados pela sociedade de forma material e psicológica. O dinheiro é visto como um reflexo do desempenho e as pessoas são encorajadas a ostentar símbolos de riqueza ligados ao seu desempenho. No extremo oposto dessa dimensão encontramos os países escandinavos e a Holanda, onde a modéstia é mais valorizada do que a ostentação. Os vencedores são encorajados a serem discretos e os ricos evitam de ostentar sua riqueza em público. O Brasil tem um escore equilibrado nessa dimensão, intermediário entre os extremos citados há pouco. Na prática, isso se manifesta com ostentação em certas situações, ligada não só ao desempenho mas também muito conectada à posição hierárquica da pessoa na sociedade (mesmo com mau desempenho). A valorização da qualidade de vida é importante na cultura brasileira, enquanto que a modéstia não é muito encorajada.

Essa ostentação ligada à posição social na hierarquia brasileira é o que sustenta as chamadas “mordomias” dos políticos em todos os níveis (federal, estadual ou municipal). É por isso que vemos os ocupantes de posições de autoridade utilizando automóveis de luxo com motoristas, enquanto que, por comparação, na Holanda o Primeiro Ministro tem orgulho em utilizar uma bicicleta para ir ao seu local de trabalho. Pode-se dizer também que os escandinavos têm orgulho em demonstrarem modéstia, enquanto que aqueles que ostentam sua posição ou desempenho são criticados ao fazerem isso.

Incerteza (Controle da Incerteza — CDI na denominação original) é o grau em que uma cultura utiliza mecanismos conscientes e inconscientes para reduzir ou evitar o sentimento de medo da incerteza em diferentes situações. Esses mecanismos podem ser o planejamento e a organização (que se destacam na Alemanha, por exemplo), a religião, a burocracia e a legislação detalhada, todos fatores que se destacam bastante na cultura brasileira; e também a expressão das emoções, que é um mecanismo inconsciente diminuindo a incerteza na medida em que permite que se saiba como as pessoas estão se sentindo em qualquer situação (esconder as emoções gera incerteza porque não se sabe o que as pessoas realmente estão sentindo naquele momento).

Na política brasileira o CDI se observa nas frequentes discussões sobre a necessidade de mais leis, cada vez mais detalhadas e específicas. Ao invés de aplicar a legislação vigente, por exemplo, nos casos de homicídios e violência contra mulheres, criam-se leis adicionais específicas para esses casos; de maneira semelhante, criam-se leis específicas para tratar da igualdade de remuneração entre homens e mulheres, ao invés de aplicar a legislação já existente que trata de isonomia salarial. Os exemplos são muitos.

No Brasil, procura-se resolver o problema da impunidade criando mais e mais leis, ao invés de fazer cumprir as leis já existentes. Esse é um comportamento típico das culturas com alto escore em CDI (o escore do Brasil é 76).

Por outro lado, a livre expressão das emoções é uma característica marcante da cultura brasileira. Basta ligar a televisão nos inúmeros programas de auditório para constatar este fato. A existência de vários canais de TV dedicados a programas religiosos também atesta a valorização da fé religiosa como mecanismo de Controle da Incerteza.

Finalmente, o Relativismo (Orientação de Longo Prazo — OLP no original) é caracterizado por três características paralelas: (1) a aplicação de normas de forma casuística, dependendo da situação; (2) a flexibilidade contrastando com a disciplina diante de qualquer circunstância; e (3) o foco nos fins ao invés de nos meios para justificar as ações de uma pessoa. Nas culturas com alto escore em Relativismo (REL) como a China e o Brasil, essa flexibilidade pode acabar sustentando uma corrupção sistêmica manifestada com enorme frequência. Nas sociedades com baixo escore em REL, a corrupção é observada com menor frequência e intensidade.

No Brasil temos orgulho da nossa criatividade e capacidade de improvisar soluções; entretanto, esse mesmo valor cultural sustenta também a falta de disciplina na execução de tarefas importantes e a corrupção no uso de recursos públicos e privados.

Em resumo, o modelo PIDIR permite descrever de forma sintética a cultura brasileira como sendo uma cultura caracterizada por:

Hierarquia

Relacionamento & grupismo

Ostentação

Emoção, religiosidade & burocracia

Relativismo & flexibilidade

É importante entender como esses mecanismos funcionam para que se possa mudar o que bem merece e manter aquilo que se deseja continuar. A polarização entre direita e esquerda na política é apenas uma das camadas superficiais da nossa cultura. Além disso, essa polarização é uma imitação barata da cultura americana, importada indevidamente por uma mídia nacional rasa e subserviente à colonização cultural norte-americana. Para realmente compreender a dinâmica da cultura brasileira é preciso mergulhar mais fundo e conhecer os valores subjacentes que influenciam nosso comportamento.

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Fernando Lanzer
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Written by Fernando Lanzer

Consultant on Leadership Development, Managing Across Cultures, Leading Change. Author of “Take Off Your Glasses.”

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