O Brasil seria melhor se tivesse sido colonizado pelos holandeses?

Fernando Lanzer
5 min readMay 2, 2017

Essa afirmação aparece de vez em quando nas conversas de botequim, quando se atribui a culpa dos nossos problemas culturais à colonização portuguesa. Dizem que, se não tivéssemos expulsado os holandeses na batalha de Guararapes de 1649, hoje o Brasil seria um “paraíso holandês” igualitário, onde todos andam de bicicleta, o aborto e a maconha são descriminalizados e existe pleno emprego.

A questão é bem mais complexa do que uma conversa de botequim; e merece ser aprofundada um pouco mais.

Para colocar as coisas em perspectiva, vale lembrar que as circunstâncias que levaram à revolta contra a invasão holandesa por volta de 1645 tinham menos de patriotismo e mais de interesse econômico, de parte a parte. Os holandeses haviam emprestado grandes quantias aos portugueses e brasileiros donos de plantações de cana e usinas de açúcar, a longo prazo e juros baixos. Quando quiseram cobrar as dívidas, que vinham sendo “roladas” por vários anos, os devedores decidiram pegar em armas e expulsar os invasores… Foi uma forma conveniente de deixar de pagar o que deviam, em nome de um patriotismo que até então não havia se manifestado.

A tulipa tem espinhos

Já o “paraíso holandês,” para muitos brasileiros, tem também o seu lado ruim. Como disse Leandro Karnal no Estadão: “a tulipa tem espinhos.”

É importante destacar que a Holanda não é um paraíso, como de resto nenhuma cultura é melhor do que outra. A avaliação que cada pessoa faz é dependente dos valores de cada um; aquilo que para alguns é positivo, pode ser muito negativo para outros. Existe ainda o aspecto de que “a grama do vizinho sempre parece mais verde.” Ao se queixar da própria cultura, muitos brasileiros olham para outros países, como os Estados Unidos ou a Holanda, e pensam: “seria melhor morar lá!” Os holandeses, por sua vez, em geral, têm grande admiração pelo Brasil e gostariam de mudar para lá. Adoram o povo e o clima brasileiros e costumam ter uma visão muito crítica do seu próprio país.

Comparada com o Brasil, a Holanda tem aspectos desagradáveis: as pessoas dizem as coisas “na lata,” a comunicação é direta. Aos olhos de muitas outras culturas, os holandeses são rudes e grosseiros, sem papas na língua. Eles se acham apenas francos e sinceros, mas quem vem de uma cultura mais afável pode se chocar com tamanha franqueza. Pessoalmente, como bom gaúcho, não tenho problema com isso; os gaúchos gozam de reputação semelhante entre as culturas regionais brasileiras. Mas entendo bem que, para muita gente, esse estilo direto parece até ofensivo.

Responsabilidade até demais

Os holandeses assumem muito a sua responsabilidade individual, o que é elogiável. Entretanto, isso chega ao ponto da falta de solidariedade em certas situações. Você pede ajuda e o holandês avalia a situação, analisando se ele tem alguma coisa a ver com aquilo, se o problema foi criado por alguma que você fez e não deveria ter feito. Ele não “compra” o seu problema automaticamente; e pode simplesmente dizer: “é, você tem um problema!” Ou seja: “você se meteu nessa enrascada, a responsabilidade é sua e não minha; não venha querer me meter num problema que você mesmo criou! Trate de resolver isso sozinho!”

Nós, brasileiros, muitas vezes “compramos” os problemas dos outros e saímos do nosso caminho para ajudar. Os holandeses podem até fazer isso, mas somente se sentirem pena de você. Ou seja, se na avaliação deles você é realmente uma vítima da situação, podem ajudar (e muito). Mas se eles avaliarem que a culpa é toda sua por se meter numa enrascada, por negligência ou desleixo, consideram que seria injusto recompensar a sua falta de responsabilidade. E podem deixar você “na mão,” considerando que você merece.

Qual é a pressa?

Outro aspecto que irrita quem vem de fora é a total falta de pressa que se vê em toda parte. O lado positivo disso é que o holandês parece calmo; mas isso faz com que o trânsito seja lento e o serviço nas lojas e restaurante também. Até nos restaurantes de “fast food” a “food” não tem nada de “fast.” Tenho certeza que o McDonald’s da Holanda é o mais devagar do mundo. O lema nacional parece ser: “qual é a pressa?” Os holandeses não têm pressa e não entendem a pressa dos outros, que sempre lhes parece um exagero. Você acha que isso não é um problema? Espere então até aquele momento em que você se atrasou para uma reunião importante e o trânsito não anda porque uma velhinha de bicicleta está bloqueando a passagem da fila de carros à sua frente; ou quando você quer jantar antes do cinema e o garçom leva 30 minutos só para trazer o cardápio… Na Holanda você precisa saber que os serviços levam mais tempo para acontecer. Só tem uma pessoa na sua frente na fila do caixa? Calma. Essa pessoa pode levar 10 minutos para ser atendida.

Respeito a todos, menos à autoridade

A Holanda é uma sociedade muito igualitária. Isso é muito bonito, mas significa também que, comparado com o Brasil, na Holanda não existe respeito à autoridade do chefe, do perito, dos mais velhos. Todas as pessoas devem ser ouvidas e respeitadas igualmente, sem privilégio nenhum para ninguém. Qualquer chefe pode ser contestado, em qualquer lugar, por alguém que tenha menos experiência, menos conhecimento ou menor posição hierárquica. Ser chefe é mais difícil do que em outras culturas; ser policial não significa que vão obedecer o que você diz (você tem que persuadir as pessoas a obedecerem); ser um especialista não lhe dá respeito automaticamente: a sua opinião tem o mesmo peso que a opinião de qualquer outra pessoa.

Tolerância ao mau desempenho

Os holandeses têm uma sociedade muito inclusiva, o que é admirável. Mas isso significa, também, que muitas vezes se tolera um desempenho abaixo do padrão que seria exigido em outras culturas. A ênfase no desempenho é menor e isso ajuda a atrasar os serviços (qual é a pressa?). Aquele funcionário que faz tudo mal feito e que seria demitido na primeira semana de trabalho, no Brasil ou nos EUA, na Holanda permanece no serviço, trabalhando mal, até eventualmente aprender a fazer as coisas razoavelmente bem; mesmo que isso demore três anos. O lado positivo é a inclusão. O lado negativo é que o desempenho é baixo e lento; como cliente, você sofre as consequências disso.

O paraíso não existe

A lista é enorme e daria para encher muitas páginas. Quero apenas destacar que o Brasil tem muitas coisas melhores do que a Holanda; temos algumas coisas a aprender com os holandeses, mas temos também coisas a ensinar. De longe, certas culturas parecem ser melhores, mas nenhuma cultura é melhor do que outra. O que cabe discutir é se existem alguns aspectos na nossa cultura brasileira que gostaríamos de melhorar. Podemos nos inspirar olhando para outras culturas; mas precisamos considerar também o lado negativo dessas outras sociedades. Precisamos escolher com cuidado o que imitar e o que deixar de lado, para não importar justamente aquilo que só vai nos prejudicar.

Para quem está pensando seriamente em mudar de país, para longe dos Lulas e Aécios, para onde não há nada a Temer, um conselho: examine bem a cultura do seu país de destino, antes de mudar. Procure conhecer os aspectos positivos e negativos, para não se arrepender. Mudar de país é como casamento: o seu noivo(a) não é uma pessoa perfeita. Olhe bem para os defeitos da pessoa amada (eles existem!). Se você consegue conviver com os defeitos, pode casar sem medo. Escolher outro país é a mesma coisa. Olhe bem antes de pular.

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Fernando Lanzer

Consultant on Leadership Development, Managing Across Cultures, Leading Change. Author of “Take Off Your Glasses.”