Decifra-me ou te devoro!

O Egito é o Brasil Amanhã?

Fernando Lanzer
9 min readFeb 21, 2019

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Este texto faz parte do livro “Era uma vez… mas não erra de novo!” lançado em 2014. Infelizmente, o texto continua atual e parece até um tanto profético… Resta saber se poderemos mudar nosso futuro para 2023.

https://www.amazon.com.br/Era-Uma-Vez-Erra-Novo/dp/1517368472/ref%3Dsr_1_6?__mk_pt_BR=ÅMÅŽÕÑ&keywords=Fernando+Lanzer&qid=1550745367&s=gateway&sr=8-6

De uma série que continua: “O Brasil que eu quero”.

Escrevo do Cairo, onde o terceiro aniversário da revolução egípcia que derrubou Hosni Mubarak, ditador militar durante 30 anos, foi marcado por choques violentos entre extremistas secularistas e islamitas. Saldo das comemorações: 49 mortos e centenas de feridos (nos números oficiais; como sempre, há quem diga que os números são ainda piores).

No mesmo dia (25 de janeiro) São Paulo comemorava seu aniversário mais do que quatrocentão. Em meio às festas oficiais, houve em paralelo protestos contraa Copa doMundo e rolezinhos frustrados. Os shoppings fecham suas portas e aquilo que começou como uma diversão de adolescentes agora é um fenômeno político e social que empolga os intelectuais e assusta a classe média.

O que tem a ver um 25 de janeiro com outro 25 de janeiro? Infelizmente, têm tudo a ver.

Decifra-me ou te devoro

Era o que dizia a esfinge, aos viajantes que passavam na sua praça de pedágio séculos atrás. O enigma a ser decifrado hoje é outro: diz respeito aos valores culturais subjacentes que sustentam a sociedade egípcia, ameaçada de se tornar insustentável, e que são os mesmos que sustentam a sociedade brasileira, o gigante que acordou de mau humor. Tanto o Egito quanto o Brasil são culturas do tipo Pirâmide, na tipologia que Huib Wursten desenvolveu, calcado nas pesquisas pioneiras do Professor Geert Hofstede. Ou seja: ambos têm culturas hierárquicas, corporativistas e com forte influência do pensamento mágico (religião e superstição).

Qual o motivo da minha preocupação? A escalada do radicalismo e da violência. Nos últimos três anos, passei mais tempo no Egito do que no Brasil, em função do meu trabalho (sou brasileiro, mas minha base profissional e residência são na Holanda). Testemunhei a guerra urbana crescente entre os radicais secularistas, de um lado, e os radicais islamitas, de outro. O Egito está dividido em três terços mais ou menos equivalentes em tamanho. No meio estão os moderados, que estão mais divididos e menos organizados do que os radicais. Quando dois querem brigar, quem está no meio para apartar acaba apanhando dos outros dois.

Enganam-se aqueles que colocam os militares no papel de vilões no conflito egípcio. As forças armadas (no Egito e em qualquer outro país) só se sustentam como força política quando têm o apoio de boa parcela da população, geralmente a parcela mais abastada e conservadora, interessada em manter seus privilégios. A classe dos guerreiros de qualquer tribo (os militares) costuma ser manipulada para servir aos interesses daqueles que detêm o poder econômico. A violência no Egito é incitada e executada pelos radicais de direita e de esquerda, islamitas e secularistas. Os militares apoiam a direita, mas quem atira nos manifestantes é a polícia de choque e não o exército. Os policiais à paisana pegam em armas e cometem atrocidades que assustam os soldados, os quais são na maioria garotos imberbes que carecem de qualificação para serem tão cruéis.

O que assusta, no Egito, é que os radicais não deixam espaço para o diálogo. Advogam abertamente, de ambos os lados, que a única solução para a divergência de idéias é a luta armada, é o assassinato em massa dos seus oponentes.

E o Brasil, é muito diferente disso?

Me assusta ver o crescimento das expressões radicais nas redes sociais, nas conversas de bar, no jornalismo cada vez mais Alcione. Com que facilidade se levanta a voz para gritar “morte aos petralhas” ou “coxinha, só matando”… Por enquanto, parece briga de malandro: é muito grito e pouca ação de verdade; mas os ânimos estão se acirrando, o pessoal está se exaltando. Os “black blocs” começaram sendo taxados de vândalos infiltrados; agora já estão sendo justificados como atores políticos que expressam a insatisfação das massas contra um governo opressor. Já os governos estaduais parecem que só conseguem conter manifestações de protesto na base da porrada desenfreada. O que me preocupa é a apologia da violência, de parte a parte.

Dizem os frequentadores dos shoppings que os “rolezinhos” “são um ultraje!”. Minha sócia lembrou do “Ultraje a Rigor”, banda de rock paulista debochada, já antiga (é do século passado), e o seu hit “Vamos invadir sua praia!”. Pois é, praia de paulista é shopping center, então o refrão foi atualizado: “vamos invadir seu shopping!”. Só que um deboche adolescente está sendo tratado como estopim de uma guerra de classes. Toda guerra é estúpida e burra.

As causas de tudo isso, tanto no Egito como no Brasil, estão nos valores subjacentes de cada cultura, no inconsciente coletivo de cada sociedade. Jung falava nisso como algo hermético e obscuro. Pois bem, Hofstede surgiu e mediu o inconsciente coletivo. Agora isso é palpável e quantificado, com validade científica e coeficiente de fidedignidade estatística. Os números estão aí e contam uma história fascinante e terrível.

A Pirâmide Social

Na dimensão da hierarquia, ou Distância de Poder (DIP), Brasil e Egito têm quase o mesmo escore e é um escore elevado. Significa que nessas sociedades se acredita que vivemos num mundo desigual, onde algumas pessoas têm muito mais poder do que outras. Vigora a crença de que a desigualdade é uma realidade a ser aceita. O que cada um deve fazer é tentar escalar a Pirâmide Social e se posicionar numa posição vantajosa em relação aos demais. Manda quem pode e obedece quem tem juízo. Cada macaco no seu galho.

Os símbolos de poder e de autoridade são importantes e precisam ser ostentados, para que todos saibam qual é a quantidade de poder que você tem. Isso acontece em cada degrau da pirâmide. O mestre de obra se diferencia do pedreiro; a presidente se diferencia do ministro. Ao longo de cada nível, as pessoas procuram ostentar, conforme a sua quantidade de poder. Ou melhor, geralmente procuram aparentar ter mais poder do que realmente possuem. Cada nível social tem suas roupas de grife, suas bijuterias, jóias, relógios, automóveis, etc. Cada um tem sua marca de sapato, de relógio e de bolsa. A classe pobre sonha em ser classe média, a classe média sonha em ser classe alta, a classe alta sonha em ser americano e morar em Miami. Gente de todas as idades entra no esquema. Nos “rolezinhos” os adolescentes aparecem de boné, tênis e roupa de grife. Em busca das grifes se assalta e se mata.

No trabalho a hierarquia dá o tom. O chefe nunca é contestado, sempre tem razão. As pessoas têm medo de dar sua opinião, de fazer perguntas que desagradem. Isso começou na escola, onde aprendemos a não discutir com os professores, até antes disso, em casa, onde o pai e a mãe devem ser tratados de “senhor” e “senhora”.

Nenhuma cultura é melhor ou pior do que a outra, mas cada uma tem seus problemas, suas qualidades e seus defeitos. Nas culturas de alta DIP o problema mais evidente é a corrupção. O poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente. Numa sociedade onde cada um busca exercer o poder no seu respectivo degrau da hierarquia, a corrupção existe não apenas nos altos escalões, mas em todos os níveis.

A delícia dos grupos

Na dimensão “Individualismo versus Coletivismo” (IDV) tanto Brasil (38) quanto Egito (25) são coletivistas. Individualistas são os americanos, com escore de 91. Abaixo de 50 somos todos coletivistas. Isso significa que valorizamos o fato de pertencer a certos grupos. Esses grupos nos ajudam, tomam conta de nós, em troca da nossa fidelidade. Os relacionamentos, portanto, são mais importantes do que as tarefas. Existe um lado muito belo nisso tudo, que diz respeito às amizades, que são duradouras. E existe um lado muito feio nisso tudo, que diz respeito à falta de respeito por quem não é seu amigo. Aos amigos, tudo; aos demais, os rigores da lei. Isso significa que a lei não vale para todos, não é universal. Combinando a alta DIP e baixo IDV, o que se vê é que a lei não vale para quem tem poder e não vale para quem é amigo dos poderosos.

No Brasil (e no Egito) se valoriza tudo aquilo que é “exclusivo”. Se valoriza aquilo que “é só para você e seus amigos”, todos os demais estão… excluídos. Nossas sociedades são exclusivistas. Não admira que a maioria do povo se sinta excluído de quase tudo: a propaganda na TV, jornais, revistas, enfatiza como é bacana ter algo exclusivo. O “ter” passa a ser mais importante do que o “ser”, pois as posses materiais alardeiam o poder que você tem, os grupos a que você pertence. Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és.

A combinação de alta DIP com Coletivismo facilita a eclosão de conflitos entre grupos: nós contra eles. O nosso grupo tentando subir na hierarquia, excluindo os grupos diferentes do nosso. O perigo é a escalada de radicalização. Nas sociedades coletivistas e de alta DIP o pensamento crítico costuma ser menos desenvolvido. Ninguém quer contrariar o chefe e ninguém quer contrariar os seus próprios amigos. Isso pode levar um grupo todo a fazer bobagens, pela falta de alguém que conteste a bobagem dominante. As ideias radicais são simplistas, distorcem a realidade e minimizam a complexidade da vida. Podem facilmente descambar para a violência. Por isso, são perigosas. Esse é o lado tenebroso das culturas coletivistas.

O Controle da Incerteza (CDI)

Nessa dimensão nosso escore é elevado (também no Egito) e o significado está em usar mecanismos inconscientes para evitar a ambiguidade. As sociedades de alto CDI valorizam o pensamento mágico, a religião e a superstição, que são formas de evitar que coisas ruins nos aconteçam. Os brasileiros são tão religiosos que muita gente pratica mais de uma religião: se dizem católicos mas também frequentam um terreiro de Umbanda, ou uma sessão espírita, diante de uma grande necessidade. A flexibilidade (vide próximo tópico) reforça o uso de vários mecanismos que possam ser úteis, mesmo que pareçam contraditórios.

Orientação de Longo Prazo

Essa dimensão (OLP) tem um nome enganador, pois não se trata exatamente de pensar sempre no longo prazo em termos de planejamento. Se trata, na verdade, de flexibilidade (escore alto) versus rigidez na aplicação de normas formais e informais (escore baixo). O Brasil tem um escore de 65, relativamente alto se comparado com a Alemanha (31) ou os EUA (29), embora seja muito mais baixo do que o escore da China, que é de 118, o mais alto do mundo.

O que o escore brasileiro significa, em poucas palavras, é que nessas sociedades (de alta OLP) os fins justificam os meios. Nós brasileiros temos orgulho da nossa flexibilidade, da nossa criatividade e da nossa capacidade de improvisação. Tudo isso está ligado à alta OLP, que significa valorizar o fato de que há muitas maneiras diferentes de se chegar aonde queremos. Não existe um caminho único válido, em detrimento dos demais. Existe maior tolerância a ideias contraditórias. Infelizmente, existe também maior tolerância à corrupção. Não é à toa que a corrupção existe de forma abundante em toda a sociedade brasileira, não apenas na classe política.

A ligação com prazos mais longos está ligada a um sentimento (consciente e inconsciente) de esperança, de que tudo vai dar certo, algum dia. O brasileiro típico tem uma fé no futuro distante que é admirável, considerando todas as dificuldades enfrentadas no curto prazo. Essa combinação de fé no futuro e de flexibilidade para chegar lá é o que evitou, na nossa história distante e recente, que a radicalização nos levasse a uma guerra civil que dividisse o país. A “turma do deixa-disso” predominou sobre os radicais que queriam sangue, de um lado e de outro. Tivemos nossas lutas, sim, nossas masmorras e torturadores; todavia, nossa violência fratricida ainda é menor do que aquela que se viu e se vê em outras culturas.

O mais importante disso tudo, entretanto, não é o passado e sim o que podemos fazer no presente para direcionar o nosso futuro. O que devemos fazer para que a radicalização deixe de se propagar? O que devemos fazer para formar uma cultura mais justa para nossos filhos e netos, sem precisar passar por um banho de sangue no caminho? Tanto no Egito como no Brasil, o problema central é a concentração de renda excessiva numa elite de pequeno tamanho e grande pobreza de espírito. Essas elites só pensam em manter seus privilégios, pouco se preocupam com o país como um todo e não ligam para o que acontece com os grupos dos quais não fazem parte. Os outros que se explodam. Se as elites brasileiras e egípcias não se mobilizarem para mudar a situação dos respectivos países, correm o risco de se tornarem vítimas do seu descaso para com a maioria da população, pobre e desqualificada.

O Brasil que eu quero

É um país com mais educação, no seu sentido mais amplo. Precisamos desenvolver mais a cidadania, o respeito, a valorização da diversidade e da equivalência, ou seja: somos todos diferentes, mas ninguém é necessariamente melhor do que o outro. Temos todos o mesmo valor como seres humanos, tanto os que usam mocassim italiano como os que usam chinelo de dedo. Precisamos desenvolver maior entendimento da nossa própria cultura, dos nossos próprios valores. Quero menos imitação cega de modelos americanos e europeus, e mais discussão aberta sobre o país que queremos ser. Essa discussão começa e termina com o entendimento dos nossos valores culturais.

Sócrates (não o corintiano, o ateniense) prescreveu: conhece-te a ti mesmo, antes de tudo. Para fazer um país melhor, precisamos conhecer a nós mesmos, entender nossa cultura, nossos valores. O resto é fácil… Um dia tudo pode dar certo, mas somente se decidirmos mudar nosso futuro, para que amanhã sejamos não o Egito, mas uma versão melhor do próprio Brasil.

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Fernando Lanzer
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Written by Fernando Lanzer

Consultant on Leadership Development, Managing Across Cultures, Leading Change. Author of “Take Off Your Glasses.”

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